quarta-feira, 16 de maio de 2012

A DISCIPLINA E A INDISCIPLINA COMO FATORES FUNDAMENTAIS DE FORMAÇÃO DO ALUNO CRÍTICO NO MUNDO ATUAL


A DISCIPLINA E A INDISCIPLINA COMO FATORES FUNDAMENTAIS DE FORMAÇÃO DO ALUNO CRÍTICO NO MUNDO ATUAL

Mário Sérgio Vasconcelos*
Pós-doutor em Psicologia Cognitiva pela Universidade de Barcelona; Doutor em Psicologia Escolar pela USP/SP;
Mestre em Psicologia Social pela PUC/SP


A sociedade contemporânea passa por um momento singular em que as mudanças são muito expressivas. A cada dia, surgem novas tecnologias que influenciam nosso ritmo de vida e alteram as relações entre as pessoas. A inserção irreversível da mulher no mercado de trabalho tem provocado sensíveis transformações no modelo familiar e, com isso, diferentes instituições educacionais são criadas para atender ou cuidar de nossas crianças. As mudanças são tantas nos mais variados setores, que podemos dizer que hoje vivemos não uma época de mudanças, mas uma mudança de época. Estamos no terceiro milênio, globalizados e numa sociedade de mercado em busca da modernização.
Nesse contexto, muitas pessoas sentem-se inseguras quanto ao seu futuro e ao das crianças, não sabendo em quem e no que acreditar. Pais não têm certeza de como educar. Consideram ultrapassados os valores transmitidos pela tradição e se vêem indecisos em saber qual o melhor caminho a seguir. As crianças e adolescentes resistem em respeitar os limites que visam a assegurar uma convivência verdadeiramente democrática e, em alguns casos, reina uma falta de compromisso com tudo e com todos.
No contexto escolar, os professores também estão em dúvida sobre quais caminhos seguir. Em visitas às escolas, temos observado, com freqüência, professores afirmarem, por exemplo, que os alunos perderam o respeito pelas pessoas, que já tentaram de tudo e não sabem o que fazer. Desse modo, manifestam que os bons valores de outrora estão sendo desconsiderados e analisam tal fenômeno como plena crise de moralidade. Essa situação traduz uma ótica pessimista e nos conduz, inevitavelmente, a uma reflexão sobre os valores morais e a ética do cotidiano escolar.
Sem dúvida, as mudanças contemporâneas são motivos que fazem da ética tema de interesse para vários segmentos. A palavra ética está presente nos jornais, nas rádios, na TV, nas livrarias e adentrou também o contexto escolar por meio dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). A ética tornou-se tema transversal indicado para compor a formação do aluno. Pensar a ética no contexto escolar é hoje, pois, uma exigência de lei, que tem por objetivo problematizar valores e regras, visando ao desenvolvimento moral.
Porém é preciso saber de qual ética realmente se fala no cotidiano escolar. Em pesquisa que realizamos com 756 professores de 5 estados brasileiros, tendo por objetivo desvelar as concepções que professores de várias séries de escolas publicas e particulares têm sobre “ética”, constatamos que 78,6% valorizam o termo quando associado à disciplina e indisciplina na escola. Estão imediatamente interessados em estabelecer controles para os comportamentos que consideram inadequados nos alunos.
Na mesma pesquisa, os professores teceram várias explicações para a origem e motivos da indisciplina. A grande maioria (83,4%) atribui as causas da indisciplina a fatores externos à escola. Dizem, por exemplo, que o comportamento indisciplinado vem da família que não soube educar, é conseqüência da violência transmitida pelos meios de comunicação, vem da condição de pobreza dos alunos e do uso de drogas. Uma parcela bem menor (17,6%) de professores atribui a indisciplina a fatores internos ao contexto escolar, como, por exemplo, problemas da escola e falta de preparo do professor.
Com essa leitura da realidade, majoritariamente ancorada em um determinismo externo prévio sobre a indisciplina, ficamos diante de uma espécie de imobilismo no sistema educacional para lidar com a questão. Desse modo, a escola e os professores não podem fazer nada, se vêem desprovidos de mecanismos de atuação e sentem-se isentos de cumprir o seu papel de facilitadores do processo de constituição do sujeito aluno. Assim, movidos pelas incertezas provocadas pelas mudanças contemporâneas, os professores reforçam uma concepção de escola instrucional, muito distante de uma escola formadora necessária à constituição de alunos que saibam lidar com as tendências, diversidades e complexidade de um mundo globalizado.
Atualmente um aluno, mesmo sem freqüentar a universidade, pode permanecer três anos na pré-escola, oito anos no ensino fundamental e três anos no ensino médio. São, no mínimo, quinze anos de escolarização. Considerando todo esse tempo que o aluno passa na escola, não seria o caso de admitir que muitos aspectos organizadores da indisciplina são produzidos no próprio contexto escolar? Além disso, é preciso indagar se a indisciplina é constituída apenas por aspectos negativos.
Do ponto de vista da construção sócio-histórica da infância, a indisciplina sempre existiu. Do ponto de vista da psicologia do desenvolvimento ela é, inclusive, necessária para a superação de limites impostos pelos adultos, até porque nem sempre os adultos estão corretos em suas concepções. Imaginem se nós não tivéssemos sido indisciplinados com as ditaduras instauradas no Brasil no século passado. Provavelmente ainda estaríamos vivenciando um regime extremamente autoritário.
O fato é que a disciplina e a indisciplina são dialeticamente constituintes das relações humanas e da dinâmica das instituições. Então, por que situá-las como algo externo e que não faz parte das relações interpessoais escolares? A disciplina que atualmente perpassa o meio escolar, como em décadas passadas, ainda está direcionada apenas ao desejo do professor de obter comportamentos de obediência dos alunos. Está dirigida ao um respeito unilateral, que tem como finalidade obter a tranqüilidade da sala de aula, o silenciamento e a passividade do aluno. Qualquer variação ao respeito unilateral é interpretada como ato indisciplinado e negativo. Diante desse quadro, o que fazer?
Penso que é preciso reorientar o debate para uma visão inclusiva da indisciplina no contexto escolar. Para uma análise mais completa e ampla sobre a indisciplina, precisamos considerar muitas variáveis presentes nessa realidade. É preciso levar em conta os aspectos culturais, econômicos, institucionais e psicológicos envolvidos nessa questão. Sabemos também que não é possível, num passe de mágica, alterar a escola e as representações que os professores fazem a respeito da disciplina e da indisciplina no contesto escolar. Contudo algumas ações estão ao alcance imediato dos educadores. Nesse sentido, com a intenção de promover aquilo que denominamos de visão inclusiva da indisciplina, vamos apontar dois aspectos que consideramos importantes de serem relevados:
 a. A construção da disciplina e da indisciplina das crianças está diretamente relacionada à tomada de consciência das regras sociais. Tal afirmação implica a necessidade de compreendermos as relações entre a construção do pensamento e a internalização dos limites e das regras sociais pelas crianças e adolescentes no contexto educacional contemporâneo. Sabemos que os limites estabelecidos pelos adultos são fundamentais para a organização do mundo do sujeito. As regras provocam a reflexão para a tomada de consciência e promovem a prospecção do pensamento e dos desejos. Promovem a reorganização funcional do sujeito. As crianças reorganizam-se cognitivamente e afetivamente ao compreenderem, negarem ou tentarem superar as regras. Ao negá-las e superá-las, alguma forma de “indisciplina” sempre esteve presente no desenvolvimento humano.
b. os conflitos são inerentes às relações interpessoais e são fundamentais para o desenvolvimento do pensamento crítico. A indisciplina gera conflitos. É preciso admitir o conflito no contexto escolar. Analisá-lo e torná-lo mais transparente são formas de possibilitar uma convivência institucional democrática e adequada à síntese reversível e crítica. Analisar um conflito supõe analisar os elementos que o compõem, suas causas e não apenas os motivos aparentes que permitiram sua manifestação. Não é papel do professor camuflar um conflito, mas sim possibilitar estratégias que possam propiciar aos alunos o debate e o levantamento de hipóteses para a resolução do conflito. O pressuposto para a construção de um aluno crítico é avançar na exploração da transparência institucional.
Pensamos que proposições dessa natureza possam auxiliar a escola a compreender que a disciplina e a indisciplina são fatores constituintes de formação do aluno crítico no mundo atual. Talvez possam auxiliar na construção de um projeto pedagógico mais próximo das tendências do desenvolvimento humano e contribuir para a elaboração de uma proposta escolar consciente de que o aluno não é, o aluno está sendo.


*vascon@assis.unesp.br 

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