A DISCIPLINA E A
INDISCIPLINA COMO FATORES FUNDAMENTAIS DE FORMAÇÃO DO ALUNO CRÍTICO NO MUNDO
ATUAL
Mário
Sérgio Vasconcelos*
Pós-doutor
em Psicologia Cognitiva pela Universidade de Barcelona; Doutor em Psicologia
Escolar pela USP/SP;
Mestre
em Psicologia Social pela PUC/SP
|
A sociedade contemporânea passa por um momento singular em
que as mudanças são muito expressivas. A cada dia, surgem novas tecnologias que
influenciam nosso ritmo de vida e alteram as relações entre as pessoas. A
inserção irreversível da mulher no mercado de trabalho tem provocado sensíveis
transformações no modelo familiar e, com isso, diferentes instituições
educacionais são criadas para atender ou cuidar de nossas crianças. As mudanças
são tantas nos mais variados setores, que podemos dizer que hoje vivemos não
uma época de mudanças, mas uma mudança de época. Estamos no terceiro milênio,
globalizados e numa sociedade de mercado em busca da modernização.
Nesse contexto, muitas pessoas sentem-se inseguras quanto ao
seu futuro e ao das crianças, não sabendo em quem e no que acreditar. Pais não
têm certeza de como educar. Consideram ultrapassados os valores transmitidos
pela tradição e se vêem indecisos em saber qual o melhor caminho a seguir. As
crianças e adolescentes resistem em respeitar os limites que visam a assegurar
uma convivência verdadeiramente democrática e, em alguns casos, reina uma falta
de compromisso com tudo e com todos.
No contexto escolar, os professores também estão em dúvida
sobre quais caminhos seguir. Em visitas às escolas, temos observado, com
freqüência, professores afirmarem, por exemplo, que os alunos perderam o respeito pelas pessoas, que já tentaram de tudo e não sabem o que fazer. Desse modo, manifestam que os bons
valores de outrora estão sendo desconsiderados e analisam tal fenômeno como
plena crise de moralidade. Essa situação traduz uma ótica pessimista e nos
conduz, inevitavelmente, a uma reflexão sobre os valores morais e a ética do
cotidiano escolar.
Sem dúvida, as mudanças contemporâneas são motivos que fazem
da ética tema de interesse para vários segmentos. A palavra ética está presente
nos jornais, nas rádios, na TV, nas livrarias e adentrou também o contexto
escolar por meio dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). A ética tornou-se
tema transversal indicado para compor a formação do aluno. Pensar a ética no
contexto escolar é hoje, pois, uma exigência de lei, que tem por objetivo
problematizar valores e regras, visando ao desenvolvimento moral.
Porém é preciso saber de qual ética realmente se fala no
cotidiano escolar. Em pesquisa que realizamos com 756 professores de 5 estados
brasileiros, tendo por objetivo desvelar as concepções que professores de
várias séries de escolas publicas e particulares têm sobre “ética”, constatamos
que 78,6% valorizam o termo quando associado à disciplina e indisciplina na escola. Estão imediatamente
interessados em estabelecer controles para os comportamentos que consideram
inadequados nos alunos.
Na mesma pesquisa, os professores teceram várias explicações
para a origem e motivos da indisciplina. A grande maioria (83,4%) atribui as
causas da indisciplina a fatores externos à escola. Dizem, por exemplo, que o
comportamento indisciplinado vem da família que não soube educar, é
conseqüência da violência transmitida pelos meios de comunicação, vem da
condição de pobreza dos alunos e do uso de drogas. Uma parcela bem menor
(17,6%) de professores atribui a indisciplina a fatores internos ao contexto
escolar, como, por exemplo, problemas da escola e falta de preparo do professor.
Com essa leitura da realidade, majoritariamente ancorada em
um determinismo externo prévio sobre a indisciplina, ficamos diante de uma
espécie de imobilismo no sistema educacional para lidar com a questão. Desse
modo, a escola e os professores não podem fazer nada, se vêem desprovidos de
mecanismos de atuação e sentem-se isentos de cumprir o seu papel de
facilitadores do processo de constituição do sujeito aluno. Assim, movidos
pelas incertezas provocadas pelas mudanças contemporâneas, os professores
reforçam uma concepção de escola
instrucional, muito distante de uma escola formadora necessária à
constituição de alunos que saibam lidar com as tendências, diversidades e
complexidade de um mundo globalizado.
Atualmente um aluno, mesmo sem freqüentar a universidade,
pode permanecer três anos na pré-escola, oito anos no ensino fundamental e três
anos no ensino médio. São, no mínimo, quinze anos de escolarização.
Considerando todo esse tempo que o aluno passa na escola, não seria o caso de
admitir que muitos aspectos organizadores da indisciplina são produzidos no
próprio contexto escolar? Além disso, é preciso indagar se a indisciplina é
constituída apenas por aspectos negativos.
Do ponto de vista da construção sócio-histórica da infância,
a indisciplina sempre existiu. Do ponto de vista da psicologia do
desenvolvimento ela é, inclusive, necessária para a superação de limites
impostos pelos adultos, até porque nem sempre os adultos estão corretos em suas
concepções. Imaginem se nós não tivéssemos sido indisciplinados com as ditaduras instauradas no Brasil no século
passado. Provavelmente ainda estaríamos vivenciando um regime extremamente
autoritário.
O fato é que a disciplina e a indisciplina são
dialeticamente constituintes das relações humanas e da dinâmica das
instituições. Então, por que situá-las como algo externo e que não faz parte
das relações interpessoais escolares? A disciplina que atualmente perpassa o
meio escolar, como em décadas passadas, ainda está direcionada apenas ao desejo
do professor de obter comportamentos de obediência dos alunos. Está dirigida ao
um respeito unilateral, que tem como finalidade obter a tranqüilidade da sala
de aula, o silenciamento e a passividade do aluno. Qualquer variação ao
respeito unilateral é interpretada como ato indisciplinado e negativo. Diante
desse quadro, o que fazer?
Penso que é preciso reorientar o debate para uma visão
inclusiva da indisciplina no contexto escolar. Para uma análise mais completa e
ampla sobre a indisciplina, precisamos considerar muitas variáveis presentes
nessa realidade. É preciso levar em conta os aspectos culturais, econômicos,
institucionais e psicológicos envolvidos nessa questão. Sabemos também que não
é possível, num passe de mágica, alterar a escola e as representações que os
professores fazem a respeito da disciplina e da indisciplina no contesto
escolar. Contudo algumas ações estão ao alcance imediato dos educadores. Nesse
sentido, com a intenção de promover aquilo que denominamos de visão inclusiva
da indisciplina, vamos apontar dois aspectos que consideramos importantes de
serem relevados:
a. A
construção da disciplina e da indisciplina das crianças está diretamente
relacionada à tomada de consciência das regras sociais. Tal afirmação
implica a necessidade de compreendermos as relações entre a construção do
pensamento e a internalização dos limites e das regras sociais pelas crianças e
adolescentes no contexto educacional contemporâneo. Sabemos que os limites
estabelecidos pelos adultos são fundamentais para a organização do mundo do
sujeito. As regras provocam a reflexão para a tomada de consciência e promovem
a prospecção do pensamento e dos desejos. Promovem a reorganização funcional do
sujeito. As crianças reorganizam-se cognitivamente e afetivamente ao
compreenderem, negarem ou tentarem superar as regras. Ao negá-las e superá-las, alguma forma de
“indisciplina” sempre esteve presente no desenvolvimento humano.
b.
os conflitos são inerentes às relações
interpessoais e são fundamentais para o desenvolvimento do pensamento crítico.
A indisciplina gera conflitos. É preciso admitir o conflito no contexto
escolar. Analisá-lo e torná-lo mais transparente são formas de possibilitar uma
convivência institucional democrática e adequada à síntese reversível e
crítica. Analisar um conflito supõe analisar os elementos que o compõem, suas
causas e não apenas os motivos aparentes que permitiram sua manifestação. Não é
papel do professor camuflar um conflito, mas sim possibilitar estratégias que
possam propiciar aos alunos o debate e o levantamento de hipóteses para a
resolução do conflito. O pressuposto para a construção de um aluno crítico é
avançar na exploração da transparência institucional.
Pensamos que proposições dessa natureza possam auxiliar a
escola a compreender que a disciplina e a indisciplina são fatores
constituintes de formação do aluno crítico no mundo atual. Talvez possam
auxiliar na construção de um projeto pedagógico mais próximo das tendências do
desenvolvimento humano e contribuir para a elaboração de uma proposta escolar
consciente de que o aluno não é, o aluno
está sendo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário